A proposta de colocação de caixas pretas nas salas cirúrgicas persiste controversa. A caixa preta tem sido fundamental para análise de eventos adversos e acidentes na aviação civil e militar. Seu objetivo é buscar as razões para a ocorrência do acidente e prevenir futuras situações semelhantes. Quando a caixa preta foi introduzida na indústria da aviação, os erros evitáveis caíram significativamente. Parece óbvia a oportunidade, interesse e talvez necessidade de adaptá-la a área da saúde, em especial em áreas que envolvem procedimentos invasivos como a sala cirúrgica, por exemplo. Devemos lembrar que muito do que sabemos sobre segurança em cirurgia tem a inspiração no conhecimento adquirido pela aviação civil e militar. Mas será que a “caixa preta cirúrgica” será aceita por cirurgiões, anestesistas e equipe de enfermagem de forma natural?
Pesquisadores de Toronto no Canadá desenvolveram uma caixa preta para uso em salas cirúrgicas, semelhante à usada no setor aéreo. O objetivo do projeto foi melhorar os resultados e a segurança dos pacientes, identificando erros durante procedimentos cirúrgicos e ensinando os cirurgiões como preveni-los. Os autores vêm testando o protótipo de sua caixa preta cirúrgica há vários meses no Hospital Saint Michael, serviço especializado em cirurgias minimamente invasivas avançadas, como by pass gástrico. Os autores conduziram um estudo de coorte prospectivo em 132 pacientes consecutivos submetidos à cirurgias eletivas videolaparoscópicas durante o primeiro ano após a implementação de um sistema de captura de dados chamado OR Black Box. Analistas caracterizaram distrações, erros e eventos intra-operatórios, medindo o envolvimento de cada membro da equipe cirúrgica. As habilidades técnicas foram comparadas, brutas e ajustadas ao risco, entre o cirurgião assistente e os assistentes.
A OR Black Box tem o tamanho de um livro grosso e registra quase tudo o que acontece na sala de cirurgia, como o vídeo do procedimento cirúrgico, conversas entre profissionais de saúde, temperatura ambiente e níveis de decibéis, por exemplo. Funciona apenas para procedimentos minimamente invasivos em que há a presença de câmeras de vídeo que facilitam o registro do procedimento. A tecnologia envolve várias câmeras e microfones, além de sensores para documentar dados fisiológicos e aspectos-chave do ambiente. Após a cirurgia, os dados são avaliados por uma equipe de desempenho, permitindo reconstruir objetivamente o que aconteceu. Com o auxílio desta ferramenta, podem-se identificar em que situação e momento erros ocorrem durante o procedimento cirúrgico e como erros acabam gerando eventos adversos. Este conhecimento possibilita o desenvolvimento de currículos de treinamento focados na prevenção de erros. Isso não significa que teremos cirurgias perfeitas, porque cirurgiões não são perfeitos. Mas significa que aprendendo com seus erros, cirurgiões operarão de forma mais segura. Dados levantados pelo uso da caixa preta cirúrgica possibilitarão um melhor treinamento cirúrgico, pois possibilitará demonstrar aos futuros cirurgiões quais são as situações mais críticas e como evitá-las.
Estudos têm mostrado que a maioria dos erros em cirurgia ocorre devido a questões técnicas que envolvem habilidades psicomotoras (por exemplo, aplicar força excessiva ao pegar um intestino ou não atar de forma efetiva uma ligadura em um vaso sanguíneo) ou por fatores relacionados à comunicação e dinâmica da equipe. Em entrevista, o Dr. Teodor Grantcharov, líder do grupo pesquisador, exemplifica com uma situação fictícia em que um cirurgião recebe o instrumento errado. Então ele fica com raiva ou frustrado e começa a cometer erros técnicos. Quanto mais erros ele comete, piores as comunicações se tornam em campo cirúrgico.
Erro pode ser definido como um pequeno desvio de um curso de ação ideal. Erros acontecem durante cada procedimento cirúrgico, porém muito poucos levam a eventos adversos e passam despercebidos pela equipe cirúrgica. Estudo de referência sobre erros médicos hospitalares no Canada, The Canadian Adverse Events Study: The incidence of adverse events among hospital de 2004, liderado pelo Dr. Ross Baker (Professor do Instituto de Políticas, Gerenciamento e Avaliação de Saúde da Universidade de Toronto), descobriu que 7,5% dos pacientes admitidos em hospitais de emergências no Canadá em 2000 sofreram um ou mais eventos adversos, desde reações a medicamentos mal administrados até escaras, quedas, infecções e erros cirúrgicos. A maioria desses eventos não resultou em nenhum dano grave, mas quase 37% eram evitáveis. Estudos mais recentes mostram taxas de eventos adversos em hospitais entre 10 e 14 por cento. Tais eventos custam bilhões de dólares aos contribuintes, geralmente em internações hospitalares mais longas.
Atletas profissionais têm treinadores que apontam seus movimentos errados e os ajudam a melhorar seu desempenho. Na opinião do Dr. Grantcharov, o uso da caixa preta cirúrgica gerará dados que permitirão melhor treinamento e melhor atendimento ao paciente, reduzindo o risco e as complicações cirúrgicas, tornando o centro cirúrgico mais eficiente, o que também permitirá economizar dinheiro e atender mais casos. Além disso, o Dr. Grantcharov espera que sua caixa preta resulte em mais transparência à sala de cirurgia para os pacientes e ajude a mudar a cultura de “culpa e vergonha” que tradicionalmente faz médicos e enfermeiros relutantes em relatar erros.
Todavia, nem tudo são flores neste tema. Uma questão relevante é que a caixa preta cirúrgica pode costurar casos de negligência. Quando um avião cai, os investigadores lutam para localizar a caixa preta para descobrir o que estava acontecendo na aeronave antes do acidente. A aplicação desta ideia e tecnologia para a sala cirúrgica é uma forma de documentar o que acontece em cirurgia. A questão é como essa documentação será usada. A intenção é melhorar o desempenho da equipe de saúde, identificar erros e erros (humanos e outros) e, posteriormente, identificar maneiras de prevenir e resolver esses problemas. No entanto, os dados em uma caixa preta da sala de cirurgia podem ser usados como evidência em processos de negligência médica, a menos que seja impedido pela legislação - da mesma forma que as avaliações de morbidade e mortalidade feitas por hospitais e funcionários para fins de garantia de qualidade e melhorias estão isentas de serem usadas em tribunais nos Estados Unidos.
Evidentemente que o Dr. Grantcharov gostaria de ver os dados da caixa preta isentos. Em sua opinião, os dados gravados devem ser protegidos e não usados em tribunais. Seria um equivoco seu uso para alimentar a indústria de litígios. Os dados registrados pelo sistema de caixa preta podem proteger pacientes incapazes de falar por si mesmos porque estavam sob anestesia ou não estavam familiarizados com os procedimentos e protocolos hospitalares. No entanto, advogados como Ray Wagner, fundador da Wagners – A Serious Injury Law Firm em Halifax, Canadá, argumenta que os dados também podem ajudar cirurgiões que estão sendo processados. Com a caixa preta, procedimentos e técnicas críticas podem ser avaliados objetivamente por outros cirurgiões quando ocorre um resultado ruim. Do ponto de vista do cirurgião, os dados seriam a confirmação de que tudo foi feito corretamente e que o resultado ruim estava além de seu controle. Um bom atendimento médico inclui comunicação clara e documentação completa. A documentação gerada pela caixa preta cirúrgica seria importante para demonstrar a qualidade do atendimento prestado se o atendimento for questionado posteriormente.
Wagner reconhece que a documentação de procedimentos cirúrgicos pode adicionar uma camada de ansiedade à equipe da sala de cirurgia. Por outro lado, também pode eliminar a necessidade de longos litígios quando o registro confirma ou nega as acusações de negligência.
Os autores do estudo do Hospital Saint Michel concluem em seu artigo que durante o período de observação, erros e eventos intra-operatórios frequentes, variação nas habilidades técnicas dos cirurgiões e uma grande quantidade de distrações ambientais foram identificadas com a caixa preta cirúrgica.
Atualmente, o programa continua ativo no hospital, ainda em fase experimental. Todos os participantes da sala cirúrgica devem dar seu consentimento para serem gravados e monitorados. Dr. Grantcharov projeta que no futuro a “caixa preta cirúrgica” será uma parte padrão de uma sala de cirurgia, assim como uma caixa preta é instrumento fundamental em um avião hoje.
Referências
1 - Jung JJ, Juni P, Lebovic G, Grantcharov T. Análise do primeiro ano da sala de cirurgia Black Box Study. 2020 janeiro.
2 - Baker GR, Norton PG, Flintoft V, Blais R, Brown A, Cox J, Etchells E, Ghali WA, Hebert P, Majumdar SR, OBeirne M, Palacios-Derflingher L, Reid RJ, Sheps S, Tamblyn R. The Canadian Adverse Events Study: The incidence of adverse events among hospital. CAMJ, 2004.
3 - Moulton D. Surgical black box may sew up malpractice cases. CMAJ. 2015