Pais e filhos médicos: um diálogo entre a tradição e a renovação da medicina
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Pais e filhos médicos: um diálogo entre a tradição e a renovação da medicina

UMA HOMENAGEM AO DIA DOS PAIS


Relato biográfico, por Dr. Miguel Nácul.



Nasci em 20 de fevereiro de 1965, um sábado pela manhã no Hospital Moinhos de Vento. Minha mãe, Dona Leda Christina me criou junto a um irmão (Eduardo) e uma irmã (Andrea), mais novos, ao mesmo tempo em que exercia a atividade de professora em uma escola estadual localizada perto de nosso apartamento na Rua Duque de Caxias no centro de Porto Alegre. Meu pai, Augusto Edmundo, médico formado pela Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) em 1956, especializou-se em ginecologia e obstetrícia, tendo exercido sua atividade profissional direcionada à sua clínica privada em um amplo consultório também localizado no centro da cidade, o Instituto Especializado em Ginecologia e Obstetrícia (IEGO). Bem-sucedido profissionalmente e constituindo patrimônio, meu pai pertence a uma geração que tinha como uma das definições de sucesso a imagem do médico com consultório cheio de pacientes “particulares”, atuando em hospitais privados, em especial o Moinhos de Vento, o mais “luxuoso” hospital de Porto Alegre.


Em 1982 entrei na Faculdade de Medicina da UFRGS. Formado em 1988, me especializei em Cirurgia Geral no Hospital de Clínicas de Porto Alegre. Configurando minha atividade profissional, comecei atendendo pacientes no consultório do pai, já em uma época de medicina dependente de convênios e seguradoras de saúde. Após alguns anos de espera, finalmente consegui o credenciamento no Hospital Moinhos de Vento. A minha efetivação como membro do corpo clínico do seleto hospital foi recebida com júbilo como mais uma conquista profissional, em especial pelo pai. Na sua visão, eu deveria focar no desenvolvimento da clínica privada e atender apenas no Hospital Moinhos de Vento. Não adiantava alegar que isto não era a realidade para a maior parte dos colegas da minha geração. Expus que eu já era um médico conhecido pelas minhas atividades assistenciais e docentes. Minha atuação em hospitais SUS, como o Parque Belém e o Pronto Socorro de Porto Alegre (HPS), me satisfazia por poder ofertar uma medicina de boa qualidade a uma população de baixa renda e muita necessitada de atenção.


Em 2012, meu pai me encaminhou para consulta a filha de um fraterno amigo, rico empresário de Porto Alegre, que apresentava sintomas digestivos, investigados por vários médicos, sem solução. Para o meu pai aquela consulta poderia ser um ponto de virada na minha vida profissional para uma clientela privada, de mais alto poder aquisitivo.


No dia da tão aguardada consulta, recebi uma moça de 20 anos, acompanhada por pai e mãe. O casal permaneceu junto à filha durante toda a consulta, interferindo em vários momentos na comunicação médico-paciente. Com eventuais episódios de náuseas e vômitos, fiquei com a impressão de um significativo componente psicológico associado. Solicitei exames complementares e sugeri uma consulta psiquiátrica, o que claramente desgostou os pais da paciente.


Minha impressão confirmou-se quando alguns dias depois da consulta, meu pai veio conversar. Decepcionado com as minhas conclusões, meu pai relatou-me um sonho que tivera na noite anterior à consulta. Na fantasia, eu havia me tornado um médico muito importante na cidade, constituindo uma superclínica privada no Hospital Moinhos de Vento, o que me tornou muito rico! O relato do sonho me desarmou completamente. Argumentei que a paciente realmente poderia estar com um quadro de depressão. Mas, discutir questões médicas me pareceu irrelevante naquele momento de revelação. A emoção que senti ao ver meu pai, para mim uma fortaleza física e mental, fragilizado, me tocou profundamente. Senti uma imensa vontade de chorar. Segurei. Exposto estava ali na minha frente um homem-rocha, demonstrando uma humanidade expressa por sentimentos ligados à paternidade. Dei-me conta que meu pai também era sujeito as intempéries e alegrias que compõem a linha de tempo da vida. A emoção que senti persiste na minha memória até hoje, cada vez que o encontro, ainda saudável, aos 94 anos de idade.


Pais são sempre vistos como heróis para os seus filhos. Colocados em um pedestal, os admiramos. A experiência me propiciou compreender melhor os sentimentos que pais têm pelos seus filhos: o desejo e a torcida pelo sucesso, a culpa, a responsabilidade, o amor, a projeção e a admiração. Uma lição de vida para o pai que eu já era (Gabriela, minha filha, nasceu em 1994) com a promessa de honrar a cada dia todo o esforço dispensado para que eu me tornasse não somente um competente e bem-sucedido médico, mas, mais importante, uma pessoa digna, realizada, feliz.


Em tempo... A paciente não retornou à consulta, nem me mandou os exames solicitados. Outro médico consultado garantiu que os sintomas seriam apenas para efeitos do uso frequente de opioides devido a uma dor lombar. Poucos meses depois, soube que ela havia falecido. Suicídio! Na imensa tristeza vinda com a notícia, um exemplo da complexidade da profissão médica.


Neste domingo, dia 13 de agosto de 2023, um afetuoso abraço a todos os pais!

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