As hérnias da região ínguino-crural são uma afecção crônica de alta prevalência. O tratamento dessas hérnias é um dos procedimentos cirúrgicos mais realizados em todo o mundo com cerca de 20 milhões de operações/ano. Nos EUA, 700 mil operações são efetuadas anualmente. No Brasil, estima-se a realização de 300 mil cirurgias/ano conforme dados do DATASUS. Independentemente do país, sexo, raça ou condição sócio-econômica, a hérnia inguinal e sua correção cirúrgica é considerado um importante problema de saúde pública, pois está associado a significativos custos diretos e indiretos, absenteísmo laboral, recorrência em curto e longo prazo, acarretando grande impacto socioeconômico.
Não mais a recorrência! A qualidade de vida é o novo padrão para avaliar o sucesso de uma herniorrafia inguinal.
Ao longo do tempo o mais importante índice de sucesso de uma herniorrafia inguinal era a incidência de recorrência pós-operatória da hérnia. A introdução das próteses de polipropileno por Francis Usher na década de 1950 e o desenvolvimento dos reparos com tela e sem tensão, em especial a técnica de Lichtenstein (1989), marcaram o início de uma era de muito baixas taxas de recorrência na cirurgia da hérnia inguinal. Os reparos pré-peritoneais minimamente invasivos por vídeo-endoscopia, propostos inicialmente por Ger (1982), Shultz (1990) e aperfeiçoados por Corbitt (1991), Arregui (1992) e Dulucq (1992), não somente mantiveram baixas taxas de recidiva como acrescentaram as vantagens da cirurgia minimamente invasiva: menos dor, mais rápido retorno as atividades normais, menos complicações de sítio operatório, entre outras. Assim, para a herniorrafia inguinal, a incidência de dor crônica e o prejuízo à qualidade de vida do paciente têm se tornado mais importantes marcadores de sucesso do que a recorrência.
Consensos internacionais recentes consideram os reparos vídeo-endoscópicos como padrão ouro no tratamento das hérnias da região ínguino-crural pela melhor qualidade de vida e menor incidência de dor crônica em relação aos reparos abertos.
Atualmente, dor crônica após uma herniorrafia inguinal é a grande dor de cabeça do cirurgião e impacta extraordinariamente na qualidade de vida do paciente. Define-se como dor crônica (ou inguinodinia) aquela que se mantém por três meses ou mais após o procedimento cirúrgico, não relacionada a outras causas. Atenção deve ser prestada a pacientes em grupos de risco para dor crônica pós-operatória: jovens, história de dor pré-operatória, intervalo inferior a três anos a partir de uma cirurgia anterior, dor pós-operatória precoce grave, complicações pós-operatórias (hematoma e infecção), transtorno sensorial pré-operatório, cirurgia aberta ou convencional, sexo feminino e reparo de hérnia recorrente.
É importante saber que dor persistente após uma herniorrafia inguinal não é raro. Há pacientes que relatam algum grau de dor residual no primeiro ano de seguimento, mas uma parcela pequena relata dor moderada à grave, incapacitante. A incidência geral de dor crônica moderada a grave após herniorrafia inguinal é de aproximadamente 10% a 12%.
Dois mecanismos distintos podem resultar em uma percepção de dor após a cirurgia. A dor aguda é predominantemente devido à estimulação nociceptiva e inflamatória, que diminui ao longo de um intervalo de tempo previsível (seis a oito semanas). Já a dor neuropática crônica, devido à atividade neural anormal, pode persistir. Portanto, se a dor pós-herniorrafia permanecer por mais de oito semanas, é provável a sua origem neuropática. Lesões primárias dos nervos podem ocorrer durante a cirurgia por transecção parcial ou completa de nervos com formação de neuroma, por lesão nervosa relacionada à manipulação do nervo (estiramento, esmagamento, lesões por cautério) ou por aprisionamento de nervos por suturas ou grampos. As lesões nervosas também podem ocorrer devido a um processo inflamatório adjacente, mais comumente decorrente da presença de uma tela. Quando um nervo periférico entra em contato com a tela, a degeneração da bainha de mielina, edema e fibrose associados podem causar dor.
A identificação rotineira dos três principais nervos da região ínguino-crural (ílio-inguinal, ílio-hipogástrico e ramo genital do nervo genito-femoral) deve ser feita durante a cirurgia aberta. Já na cirurgia vídeo-endoscópica, a identificação e a dissecção ou cauterização na topografia dos três ramos nervosos (cutâneo lateral da coxa, femoral e ramo femoral do nervo gênito-femoral) não é recomendada.
Outro mecanismo de dor crônica é a fixação da tela na região do tubérculo púbico. Se o fio de sutura alcançar o periósteo do osso do púbis, pode levar à periostite crônica e dor subseqüente. A fixação da tela nessa porção distal deve ser feita no ligamento pectíneo ou no ligamento inguinal, sem tocar no osso do púbis.
A neurectomia profilática de rotina durante uma herniorrafia inguinal aberta é recomendada por alguns autores para reduzir a incidência de neuralgia pós-herniorrafia. No entanto, esse procedimento causa dormência ou disestesia em alguns pacientes. Assim, a escolha da preservação do nervo versus o sacrifício deve ser feita individualmente. Se algum nervo for acidentalmente seccionado ou tracionado de maneira intensa ou, ainda, ficar em posição de exposição à tela, deve ser seccionado e ligado com fio de sutura absorvível e sepultado dentro da musculatura adjacente, tanto o coto proximal como o distal.
Uma abordagem multidisciplinar deve ser implementada em casos de dor crônica pós-herniorrafia. Diversas alternativas não operatórias, como medicações orais, bloqueios regionais e ablação nervosa correspondem à primeira linha de tratamento. O tratamento cirúrgico deve ser reservado quando as medidas não cirúrgicas não conseguem controlar a dor. A exploração da região inguinal e a neurectomia com remoção e reposição da tela parecem ser a abordagem cirúrgica preferida, a qual pode ser realizada por via aberta, vídeo-endoscópica ou mista. A neurectomia tem taxas de sucesso entre 70% a 100%. Sugere-se esperar um mínimo de seis meses após a herniorrafia antes de indicar uma neurectomia.
O reparo das hérnias da região ínguino-crural representa a cirurgia mais comumente realizada por cirurgiões gerais. Qualidade de vida, não mais a recorrência, é hoje o mais importante marcador de sucesso da cirurgia. Assim, a prevenção da dor crônica pós-operatória deve ser um dos cuidados mais importantes do cirurgião em relação ao seu paciente, iniciando quando da primeira consulta, passando pelo preparo pré-operatório, procedimento cirúrgico e acompanhamento pós-operatório. Por isso, o treinamento do cirurgião é fator fundamental para uma herniorrafia bem sucedida. O Instituto SIMUTEC desenvolve programas de treinamento que envolvem o aprendizado da herniorrafia inguinal com ênfase em cirurgia minimamente invasiva.
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Referências:
Claus CMP, Oliveira FMM, Furtado ML, Azevedo MA, Roll S, Soares G, Nacul MP, Rosa ALMD, Melo RM, Beitler JC, Cavalieri MB, Morrell AC, Cavazzola LT. Guidelines of the Brazilian Hernia Society (BHS) for the management of inguinocrural hernias in adults. Rev Col Bras Cir. 2019 Sep 30;46(4):e20192226.
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